A Netflix lançou a série “Todo Dia a Mesma Noite” sobre a tragédia da Boate Kiss, onde um incêndio matou 242 pessoas e deixou outras 636 feridas em Santa Maria (RS). No entanto, uma parte dos familiares de vítimas e moradores da cidade planeja processar a plataforma de streaming.
O caso da Boate Kiss, que foi uma das maiores tragédias do Brasil, completou 10 anos na última sexta-feira (27) e o sentimento de impunidade segue presente. A série que retrata o acontecimento foi lançada na quarta-feira (25) e rapidamente se tornou um dos assuntos mais comentados na internet. A trama é uma adaptação do livro-reportagem de mesmo nome escrito pela jornalista Daniela Arbex.
Contudo, o lançamento da produção revoltou um grupo formado por cerca de 40 famílias, que decidiu contratar a advogada Juliane Muller Korb para representá-las contra a Netflix. Os integrantes do grupo não fazem parte da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, porém, buscaram apoio para questionar como o dinheiro arrecadado com a série será destinado.
“Nós fomos pegos de surpresa, ninguém nos avisou, ninguém nos pediu permissão. Nós queremos saber quem está lucrando com isso. Não admitimos que ninguém ganhe dinheiro em cima da nossa dor e das mortes dos nossos filhos. Queremos entender quem autorizou, quem foi avisado, porque muitos de nós não fomos”, disse o empresário Eriton Luiz Tonetto Lopes ao jornal GaúchaZH.
O empresário, que perdeu uma filha de 19 anos na tragédia, Évelin Costa Lopes, destacou que alguns pais passaram mal por causa da série. “O mínimo que exigimos agora é que uma parte do lucro seja repassado para tratamento de sobreviventes e para a construção do memorial da Kiss. Nós não queremos nenhum dinheiro para nós”, afirmou.
A advogada do grupo, Juliane Muller Korb, disse à CNN que as famílias se queixaram da exploração comercial da tragédia e pela falta de sensibilidade da Netflix, que não os informou sobre a produção.
“Eles estavam preparados para um documentário, não para uma série dramática. Os pais e os sobreviventes estão ‘acostumados’ a ver materiais jornalísticos, com reproduções e relatos fidedignos. Mas a série é diferente. O impacto foi muito forte porque é uma simulação, uma reprodução, com rostos diferentes, com atores. Eles estão ‘acostumados’ com o pós-tragédia. E a série mostra o antes, então, é como se ocorresse de novo. É uma linha muito tênue entre ficção e realidade”, destacou Korb ao GaúchaZH.
Entenda o que as famílias desejam com o processo contra a Netflix pela produção da série
A advogada do grupo, Juliane Muller Korb, afirmou que eles não solicitaram nenhum tipo de indenização da plataforma de streaming e pretendem dialogar com a Netflix antes da formalização de uma representação judicial.
Segundo Korb, o pedido destes familiares de vítimas e moradores de Santa Maria é para que a Netflix faça algumas adaptações na produção, especialmente no trailer, e que a série não seja “só explorada comercialmente”. “Precisamos tratar da responsabilidade social sobre a dor desses pais. A que custo uma plataforma de streaming pode lucrar em cima de uma tragédia como essa?”, disse.
Confira o que o grupo deseja com o processo contra a Netflix:
- Entender por que elas não foram ouvidas e consultadas durante a produção da série;
- Abordar a responsabilidade afetiva e social das plataformas de streaming na produção de séries baseadas em casos reais;
- Reivindicar que parte dos lucros seja destinada à construção de um memorial para “para promover a reflexão permanente da comunidade”;
- Pedir alteração do conteúdo do trailer e mudança na exibição dele na televisão.
De acordo com a advogada do grupo, no trailer da série é reproduzida a cena de vários corpos dispostos no chão de um ginásio para reconhecimento pelos familiares, o que é considerado muito pesado. “Muitos pais não tiveram estrutura para entrar no ginásio com todos aqueles corpos e reconhecer os filhos, muitos nunca tiveram estrutura até hoje para ver as imagens dos corpos e essa cena é passada no trailer da série”, explicou.
Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da tragédia da Boate Kiss se pronuncia
A Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM) divulgou uma nota oficial informando que não tem relação com o processo contra a Netflix. No comunicado, a associação afirmou se sentir “representada” pela série e afirmou estar ciente de que a produção estava sendo realizada com base no livro “Todo Dia a Mesma Noite”.
O texto foi publicado nas redes sociais e assinado pelo presidente da associação, Gabriel Rovadoschi Barros. Segundo a nota, a produção “não retrata de forma individual os 242 jovens assassinados, mas sim um recorte das quatro famílias de pais que foram processados. Todos familiares de vítimas e sobreviventes retratados por personagens da obra estavam cientes e em concordância”.
O comunicado faz alusão aos pais de vítimas que foram processados por integrantes do Ministério Público por terem feito críticas à atuação no caso. A nota ainda ressalta que a associação acredita na “na potência das produções na luta por justiça e a luta por memória”.